Encostado a um corredor do Hospital, aguardando consulta, um homem forte, com ar preocupado, dialogava com uma mulher adoentada, com cara de sofrimento, sobre os anunciados cortes nas pensões de sobrevivência.
“Ninguém escolhe o país para nascer! Antigamente, a gente ainda tinha a possibilidade de emigrar. Agora, eles lá não deixam entrar e temos de ficar p'aqui, sujeitos a estas maldades”- lamentava o homem.
“O pior é que quem vai sofrer com isto são os nossos filhos e netos que estão a viver à custa das nossas pequenas reformas” - atalhava a senhora, vestida de negro, sinalizando a sua viuvez. “Eh senhor, isto está uma lást'ma e eles não querem saber dos pobres. Onde é que isto vai parar?”
O lamento é vezeiro nas conversas de toda a gente, seja da classe média, seja dos mais pobres.
Há um clima de desalento, de insatisfação e de insegurança, só comparável ao ambiente de guerra que vivi em Angola, e que afetou cerca de meio milhão de portugueses.
A definição do Pe António Vieira sobre esse flagelo, cujo primor literário não deixa de ser cruel, aplica-se, que nem uma luva, ao momento presente e aos dolorosos sacrifícios que nos impõem: “É a guerra aquele monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas, e quanto mais come e consome, tanto menos se farta."
Neste desatino, o cidadão comum mostra-se perplexo, face à iminência de mais cortes de salários e aumentos de impostos, assumidos sigilosamente e sem a necessária discussão, alegadamente, para satisfazer a ganância da troika. Depois, quando dá jeito, os governantes divulgam-nas nos jornais, para avaliarem as reações e impactes na opinião pública.
Nada disto favorece a mobilização e o empenhamento cívico; antes promove o descrédito crescente na ação governativa e nos titulares da “res publica”, como revelaram os resultados das autárquicas.
Até quando o povo permitirá estes procedimentos, e se deixará levar pela alegada inevitabilidade do pagamento de dívidas astronómicas, que ele não contraiu? Que desígnios escondidos por detrás do forçado e rápido pagamento da dívida? Será apenas ganância dos credores ou antes incapacidade dos governantes para fazerem valer os seus argumentos justificados pela recessão no país?
Apetece-me recordar aqui, salvas as devidas semelhanças, o célebre repto lançado por Cícero ao iníquo Catilina, no Senado romano, no ano 68 antes de Cristo (1): “Até quando, ó Catilina, abusarás da nossa paciência? “, discurso que constitui uma extraordinária peça de oratória política e um clássico texto da literatura latina.
É verdade que as dificuldades por que passam tantos homens e mulheres deste país e desta região, não se têm traduzido em ações violentas de protesto, como inicialmente se esperava. Todavia, isso não significa que a dignidade humana não esteja afetada.
Quando os direitos a uma vida digna, ao trabalho, à educação, à saúde, à habitação e a um salário digno são restringidos, invocando-se, apenas, razões financeiras, os cidadãos questionam, e bem! a validade das instituições públicas e do próprio estado, e a incapacidade dos seus dirigentes.
A Misericórdia de Ponta Delgada
Nestes tempos de crise acentuada, impõe-se respostas adequadas das instituições de solidariedade social, às carências de tanta gente a quem o infortúnio bateu à porta.
Existem várias IPSS com esse objetivo, nomeadamente: Misericórdias, Banco Alimentar, Caritas, Centros Sociais, Conferências Vicentinas, e os próprios cidadãos que se organizam para responder às situações de miséria e de fome. Cada uma com a sua especificidade no exercício da solidariedade humana.
Importa, porém, congregar vontades, sinergias e partilhar espaços, para que as atuações em favor dos necessitados sejam mais céleres e eficazes.
O antigo hospital de Ponta Delgada possui espaços e equipamentos que são utilizados para apoio a idosos acamados, bem como à formação e educação de crianças e jovens, todavia está parcialmente aproveitado.
Perante a dimensão das instalações, os responsáveis da Misericórdia pretendem ali instalar uma “cidade solidária”, onde diversas instituições do sector, funcionando em rede e parceria, dariam uma resposta mais satisfatória às necessidades sociais.
Porque a Misericórdia é uma instituição canónica, sob a alçada da diocese, ali poderiam instalar-se os organismos ligados à igreja católica ou até ecuménicos, o Banco Alimentar e até instituições laicais que visem a formação de jovens e adultos. Tudo tendo por base a finalidade inicial que atribuía às Santas Casas a função de darem respostas públicas às populações carenciadas, prestando não só cuidados primários e diferenciados de saúde, dando abrigo aos sem-teto, e até concedendo empréstimos, através das suas caixas económicas, ao mercado local.
Dispondo de um apreciável património, importa que a Misericórdia de Ponta Delgada retome a dianteira na ajuda fraterna e congregue, no espaço do antigo Hospital, as demais instituições de solidariedade social, cujas sinergias poderão responder mais eficaz e prontamente aos afetados pelas sequelas da crise económica.
1-http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=791
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